sábado, 17 de março de 2018

A Inexistencia do Ser.

Ficamos a flutuar sem nos conseguirmos tocar mutuamente. A imponderabilidade do ser impele-nos nessa dança infinita como duas penas que lentamente rodopiam sem nunca se aproximar. Ficamos a flutuar sempre a uma distancia de segurança, como se de dois magnetos com cargas opostas nos tratássemos. Por mais esforço que fizessemos nunca conseguimos aproximar verdadeiramente as almas. Ficamos a flutuar num limbo, no interior daquela nave cinzenta que orbitava em torno de Vénus, o meu planeta. Demasiadas conjunturas negativas nessa viagem quântica que nos fez permanecer com os olhares cruzados. Nunca permitiste que olhasse para dentro do teu ser. Incomodava-te, eu sei. Rapidamente desviavas o olhar como se eu me pudesse aperceber da complexidade da tua essência que comigo nunca compartilhaste. O teu pensamento ficou retido algures num passado não muito distante. Quiseste viajar comigo, mas o teu intimo nunca se soltou das amarras prisioneiras. Não me apercebi imediatamente que não passei de uma distracção, de um fait diver, que de alguma forma te poderia fazer avançar nessa vida irregular que insistes em levar. Encontraste-me desprovido de qualquer defesa. Propus-te uma viagem interplanetária que aceitaste sem hesitação. De alguma forma querias fugir de algo que nunca soube muito bem o quê. Mas esgueiravas-te sempre que possível para o rádio e lançavas-te em onda média ao alcance do teu passado. Diariamente, antes que o Sol meu pudesse queimar numa fracção de segundos e me desintegrasse, vestia o escanfandro hermético para sair da nave. Era necessário verificar a existência de brechas que pusessem em causa a frágil segurança do nosso casulo. Não esperavas dois segundos que eu saísse para te enfiares na sala de comunicações e te apoderasses do rádio para te dirigires ao passado que teimosamente trazias para o nosso presente, sem que eu o soubesse. Nunca te deste verdadeiramente porque alguém já te tinha. Fizeste-me voar contigo para tão longe quando na realidade nunca quiseste sair verdadeiramente da Terra. Usaste-me para uma fuga incompleta do teu ser. Sem saber, fui alvo de uma chacota crónica. Fui objecto do ridículo de alguém. E esse vírus foi-se disseminando até ao ponto de não passar de uma triste piada levada a cabo por ti, pela tua família e pelos teus amigos.
Hoje, após me ter apercebido que todo o mal do universo, do teu universo, me invadiu e me conduziu ao caminho das trevas decidi que era um excelente dia para morrer. Olhei pela última vez para o copo de Sal que colocaste atrás da porta que dá acesso ao exterior e me dou conta que te reges pelos princípios pagãos de La Baphomet. Desenhaste-a atrás do alçapão de aço sem que eu nunca tivesse percebido. Vesti o escafandro hermético e lentamente flutuei ao longo da nave. Atrasei-me precisamente 44 segundos, os suficientes para que assim que os raios de Sol incidissem directamente no meu frágil corpo o despedaçassem numa dispersão de moléculas, átomos e partículas sub-atómicas. Deixei o meu pensamento perdido para sempre na escuridão desse vácuo universal. Mas libertei-me da maldade que disfarçaste de amor. Libertei-me do egoísmo que disfarçaste de entrega. Libertei-me da hipocrisia que disfarçaste de sinceridade. Desintegrei-me, mas libertei-me de todo o veneno que expelias e me intoxicava. Nunca cheguei a identificar verdadeiramente o ponto de viragem do teu pensamento. Mas algo trazido das profundezas do universo te contaminou quando nos cruzamos com o cometa Halley. Algo de muito pernicioso invadiu a tua essência e te levou para os caminhos da obscuridão. Ou então só tornou visível algo que sempre foste. Nunca saberei. Hoje está um excelente dia para morrer. Dispo o escafandro e deixo-me invadir pelo calor extremo que numa fracção de milissegundos me abraça e num prazer momentâneo me lança para a Inexistência do Ser.






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