quarta-feira, 18 de agosto de 2010

Madame Tussauds

Por momentos parei para pensar. Parei para pensar em todas as circunstâncias que me colocaram em frente a este espelho. Rachado, corroído pela humidade cizenta que teima em invadi-lo. Abri a porta amarelecida do armário ancestral e ocorreu-me engolir todo aquele frasco cuja a data há muito nos tinha abandonado. Demasiado lugar-comum. Demasiado série B. O suor frio escorria-me pela face enquanto pensava. Enquanto pensava em todas as circunstâncias que me colocaram em frente a este espelho. Não me reconheço. Não vos reconheço. Os dias passam e os minutos ficam. Aqueles minutos em que os pensamentos petrificam e são aprisionados para a eternidade. Á espera que alguém os liberte. As memórias são de evocação. Não há uma única que traduza a realidade. Tudo é uma falácia. Os medicamentos não funcionam e as palavras rodopiam pelo cano abaixo. Paro para pensar em tudo aquilo que me transportou até este momento. As fotografias sépia apodrecem na caixa de plástico manchada pelo Sol. Vejo-me há 40, 50 anos atrás e não me reconheço. Nunca fui aquele ser que ali se encontra pictorizado. Os sorrisos, as emoções, os esgares... Tudo é um produto artificial como se tivesse no Madame Tussauds inerte a ser abraçado por estranhos enquanto os flashes me cegavam ciclicamente. Quero partir como se os parcos anos que vivi bastassem para a plenitude. Nunca bastam. Ficam os nossos objectos, os nossos livros, discos, esculturas, pinturas, hi-fi, televisões, computadores... para rapidamente serem divididos por aqueles que nunca ou quase nunca tiveram presentes. Os medicamentos não funcionam e não te reconheço enquanto me olhas. A tua cara não me é estranha, mas a bata branca parece-me desadequada. Sempre pensei que trabalhasses em esculturas de ferro forjado e agora apareces-me de bata branca como se soubesses quem sou. Falas-me ao longe em surdina. Não entendo o que dizes. Parei para pensar e não me reconheço neste espelho cinzento. O perfume Channel e o pó-de-arroz do meu tempo deram lugar a minha imagem desfigurada desdentada, com a cabeça semi-rapada onde os tubinhos drenam os coágulos que me aprisionaram o raciocinio. Por momentos parei para pensar em tudo o que aqui me trouxe e não consigo. Escrevi umas parcas palavras a ti dirigidas. Mas nem eu sei o que escrevi. Parto como se nunca tivesse existido.
(para a Nanda com saudades)