terça-feira, 14 de julho de 2009

O viking, o velho e o casal

A praia é dele. Todos os anos refaz a escadaria de terra e tábuas envelhecidas pelo desfiladeiro abaixo. K.F.F Strand é a sua marca. Dos cinco pinheiros guardiões só restam três. Recordo as suas sombras de outros tempos marcados pela pronúncia doce do norte. O viking da praia dos pinheiros. A ele podemos agradecer o acesso a um dos últimos redutos escondidos neste cantinho algarvio. O silêncio é de ouro, só interrompido pelas gaivotas nos seus cânticos anunciando o suicídio das ondas nas rochas recortadas. Todos se parecem conhecer desde sempre. Os rochedos, as gaivotas, a areia grossa e todos os seus comensais. Deito-me estrategicamente no ponto mais afastado das falésias que me rodeiam. O meu medo ancestral materializa-se nos sinais aqui e ali avisando-nos para o perigo de derrocada. A tenda de verde camuflado esconde os segredos do amor vividos pela lua-de-mel do jovem casal. Beijam-se e tocam-se como se não existisse ninguém à sua volta. A sensualidade e feminilidade das duas contrasta com estereótipo habitual. O velho, co-proprietário, coxeando com dificuldade pelo areal, aproxima-se com o seu castelhano macarrónico e pergunta "Eh Chicas, manana estao por aqui...?". Abanando o seu hidrocelo como se de um relógio antigo de parede se tratasse ouviu como resposta "Donde se puede tomar un duche". O Sol esconde-se recortando o chão. Foi a primeira vez que o velho se manteve até tão tarde na sua praia. Talvez entusiasmado pelo amor demonstrado entre as duas chicas.
Hoje a praia voltou à sua normalidade. Sem tenda, mas com os comensais do costume.

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Secret Spot


Há locais secretos que guardamos só para nós. Na maioria das vezes imaginários, embora por vezes a realidade se misture com a ficção. Chama-se a isso delírio. Eu tenho um local secreto de meditação. A única companhia são as gaivotas, o vento salgado na face e as ondas do mar no seu ritmo constante. Sento-me num círculo e deixo o meu pensamento flutuar até ao branco, ao vazio... A areia é grossa e magoa-me. Acordo sem nunca ter fechado os olhos. Leio os pensamentos daquela pessoa que se encontra a olhar para mim movendo os lábios numa língua imperceptível. Não estava ali quando tudo começou. Observo-a com atenção por detrás das minhas lentes cinzento-escuras. Parece reparar que estou a olhar para ela e continua naquela mímica labial. Tento-me abstrair daquela triste figura de costelas salientes e mamilos imponentes pelo Sol, que se esconde atrás das rochas. Reinicio "a minha andorinha" do MEC que me acompanhou até à minha praia. Donde raio apareceram estas pessoas no meu spot secreto. Um Argentino obeso, licenciado em Geografia, pede-me para fotografa-lo. Acedi, embora a sua presença estivesse a interromper o meu descanso. Queria-me fotografar com a desculpa de ver a sua imagem espelhada nos meus Prada cinzento-escuros. Naturalmente, recusei. Felizmente o tipo já estava em Portugal há cerca de 10 dias, ultrapassando o período de incubação do H1N1. Afastou-se do meu círculo tentando fotografar a italiana que se banhava nas águas gélidas e cristalinas. Bizarros hábitos estes. É assim que quando menos se espera aparecem fotografias por essa net fora sem que os seus protagonistas sonhem sequer.
De repente o meu secret spot parecia uma reunião da ONU. Felizmente, com o esconder do Sol, rapidamente se puseram a milhas ficando eu novamente com a sua hegemonia.

quinta-feira, 2 de julho de 2009

Black Vodka

O Vodka preto da nossa relação. A primeira vez que o bebi foi num terraço decorado com motivos cubanos num Agosto quente de 2000 e picos. Recordo esse momento longínquo em que fomos apresentados. Anos mais tarde projecto-te nesses momentos com as tuas tranças adolescentes. Foi a última vez que bebi Vodka preto. O sabor blueberry não ultrapassa a desvantagem da língua petrolífera. Nunca pensei voltar a beber Vodka preto excepto quando te reencontrei. O café do desabafo que se tornou numa troca de olhares, nuns breves momentos em que as peles se tocaram e os calores se fundiram. Prolongamos a nossa conversa entre alcatifas, bolas espelhadas no tecto e Vodka preto. Nunca daí passou, nem poderia ter passado. Há relações que são sem nunca o terem sido. E a nossa foi assim. Uma amizade onde as retinas se cruzaram e os espíritos se envolveram. Sabíamos à partida que o futuro era tão negro como o Vodka que me atordoava o espírito. Encontramos-nos mais duas ou três vezes sem que o platonismo se transformasse no que quer que fosse. E ainda bem. Bebo mais um golo do Vodka Preto que enche metade do meu copo dos Simpsons. Ouço Rui Veloso e penso nas verdadeiras razões, nas tuas verdadeiras razões. Não consigo entender, ou entendo agora, a inteligência das nossas atitudes. De facto há relações que não passam de trocas de olhares. E a nossa foi assim. Porventura mais forte e intensa do que... Levantei-me e fui encher mais um copo de Vodka preto que começa agora a surtir os seus efeitos. Apetece-me telefonar-te mas resisto. Sempre resisti aos meus impulsos mais instintivos. Na realidade, a forma como tudo aconteceu dilacerou-me por dentro sem que tu ou eu tivéssemos sequer tido tempo para notar. São 3:50 e apetece-me sair de casa para me refrescar. Quero um cigarro...