Espreito por detrás do arame farpado. O céu está cinzento e chuvoso. O tempo quente não se faz sentir. Arrepio-me. Dói-me a cabeça. Procuro os meus óculos sem sucesso. Ouço ao longe os carros em procissão. Todos os dias a mesma rotina, a mesma azáfama. Acendo um cigarro e espreito por detrás do arame farpado. Observo os prédios tristes e bolorentos daqui. As pessoas movem-se nas cozinhas, nas salas, como se de zombies se tratassem. Todos os dias a mesma rotina, a mesma azáfama. Espreito por detrás do arame farpado e dói-me a cabeça. Procuro os meus óculos sem sucesso. Talvez um ben-u-ron resolvesse a minha condição. Levanto-me e movo-me na cozinha. Os únicos que tenho caducaram em 2012. Procuro os óculos. Não sei onde os deixei. Sinto a visão turva por detrás do arame farpado que me separa dos prédios bolorentos daqui até aqueles montes em frente. O telefone toca mas tenho preguiça de me levantar. Sinto a cabeça a andar à roda. O cheiro a tabaco que exalo incomoda-me. Tenho preguiça de deixar de fumar. Sei que me faz mal. Sei que um dia me vai matar. Mas a preguiça impede-me de prosseguir. Existem tantas coisas que deveria e poderia fazer. Que indolência me invade o corpo e o espírito. Sinto-me um zombie de um lado para o outro nesta casa triste, fria e bolorenta. Os pingos escorrem pelos vidros. O céu cinzento ao longe. Espreito por detrás do arame farpado que me separa de tudo. Os dias passam e os mesmos carros, as mesmas pessoas andam em círculos, sem objectivos, sem beleza, numa dança aleatória. Abro a janela e grito. Mando-os foder a todos. Não têm culpa. Nem os conheço. Mas a dor que me invade leva-me a despejar no balde do lixo errado. Perdi tudo. Perdi o meu trabalho, a minha família, os meus amigos, o meu amor. Afastei-me porque a dor que sinto me impede de estar com pessoas. Refugio-me neste casulo de arame farpado. Longe de tudo. Os pingos escorrem enferrujando tudo à minha volta. Acendo um cigarro antes de apagar outro. O fumo sobe em espiral. O segundo não me satisfaz. Fica a sensação de atraiçoar o primeiro. Desligo-me. Estou presente e não estou. Longe de ti, longe de tudo. Atrás de uma cortina de arame farpado que vejo desfocada. Procuro os meus óculos e não os encontro. A dor de cabeça não me abandona. Sinto o peito latejar. Sinto ácido a percorrer-me as veias. Espreito por detrás... e não te vejo. Olho-me ao espelho e não me reconheço. Nunca me reconheço. Queria tanto cortar este vil metal que me manieta. Talvez um ben-u-ron resolvesse a minha condição. Caducou a 24 de Dezembro de 2012. E a dor persiste.
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