terça-feira, 26 de dezembro de 2017

Estradas Escorregadias

As estradas escorregadias que percorro espelham a minha alma. Flutuo na neblina vespertina que caí sobre as pedras luzidias da calçada. Cruzo-me com dois indigentes que me observam. De ar andrajoso percorrem-me das botas sujas ao barrete com a bola castanha. Identificam-se comigo. E eu com eles. Escondem estórias que ninguém ousa perguntar. Perguntam-me qual a minha graça. Finjo não entender a língua deles. Afasto-me num passo apressado. Tento alcançar um beco escuro para me esconder. A lua esconde-se momentaneamente atrás das nuvens cinzentas que começam a chorar. Encosto-me à parede pintada de musgo. Transformo-me momentaneamente em cal acizentada e fico ali camuflado. Ao longe observo aquele casal de indigentes, que sem saberem, são por mim observados. Virei o tabuleiro. As peças espalham-se à minha frente e encaixam na perfeição. Deslizo as mãos pelo chão e procuro a terra húmida. Esfrego os olhos deliberadamente. Cego momentaneamente e nego-me perante a realidade que insiste em conspurcar-me a alma. Nego-me perante as evidências que me atormentam. Observo ao longe o casal, agora mais turvo. Comunicam entre eles algo ininteligível. Consegui que não me vissem. E no entanto, mesmo desfocados, vou observando a sua relação. Tentam encontrar-me sem sucesso. Embora eu os tenho encontrado, embora eu conheça todas as suas vivências. Ao longe flutuo e disseco tudo o que me rodeia. Olho para aquele casal de indigentes, sem me aperceber que o verdadeiro perigo se encontrava ali, ao meu lado. Num ápice, sinto um líquido quente e espesso escorrer-me peito abaixo. A dor lancinante impede-me de respirar. Todo aquele tempo focado em pormenores que me distraíam, quando todo o perigo se encontrava de uma forma aparentemente pacífica e dissimulada à minha frente. Olho para baixo e vejo o cabo brilhante do punhal que me atravessa o coração. Olho de frente para aquele que me colheu a vida. Com os olhos turvos apercebo-me das suas feições que guardarei na memória que se dilacera naquele beco escuro, de paredes cizentas, onde a cal cinzenta se confunde com o meu ser. De limites mal definidos as lágrimas escorrem-me por entre as páginas do musgo salgado. Fecho os olhos e deixo-me flutuar pela neblina que se abate sobre a estrada escorregadia. O casal de indigentes percorre as pedras cinzentas da calçada. O meu assassino esconde-se novamente no beco cinzento, iluminado agora pelos raios que se projectam da torre metálica que tocando o céu se ri da minha dança aleatória naquela neblina tão característica desta cidade. 

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