quarta-feira, 20 de novembro de 2013

ZX Spectrum

Todos nós guardamos na memória os jogos de infância. Ainda ontem recordei juntamente com colegas o jogo do mata, 1-2-3 lá vai ai, macaca e depois os mais sedutores em que começamos a despertar, o quarto-escuro e o bate-pé. Provavelmente hoje em dia os meus filhos e os restantes miúdos nem sequer saberão do que estamos a falar. Cada um tem uma consola de jogos em casa, televisão por cabo, ipods, computadores on-line 24 por dia. Nós habitavamos as casas alheias em grupo. Nem todos os pais tinham poder económico para oferecer aos filhos um 48K. Há alguns anos atrás custavam perto de 50 contos, o equivalente a hoje oferecermos a alguém um carro como presente de natal. A vantagem é que os amigos juntavam-se aleatoriamente e jogavam em grupo. Os discos ouviam-se em grupo e quando nos fartavamos ia-mos brincar para o jardim da frente. As noites que passei na pré-adolescência a conversar nos bancos do jardim. Eramos rapazes e raparigas no jardim que hoje já não existe. As noites de Luar em cima dos telhados da EDP. Inacreditavelmente perigoso. Se o telhado de fibrocimento se partisse íamos cair directamente no centro dos geradores de alta voltagem. Nem sequer tínhamos a noção. Consegui nunca partir a cabeça. Em compensação fracturei duas vezes o pé esquerdo, a primeira vez caído de uma laranjeira que dava para a janela de um hotel. Tudo na esperança de ver uma bifa loura a despir-se. A segunda, enfiei o pé num buraco e continuei a marcha. A mazela mais grave foi um traumatismo crânio-encefálico com perda de conhecimento que me trouxe de charola para as urgências de São José. Claro que fui suturado num joelho, num dedo mindinho com exposição óssea... Enfim... Sobrevivi e vivi a minha infância como se fosse a última infância. Podia ter morrido algumas vezes e sido notícia de jornal. Andei de BMX em contramão, pior... andei de BMX numa torre abandonada sem barreiras de protecção. Subi a gruas, explorei fábricas de conservas desactivadas, brinquei em obras. Recordo-me de ter dado as primeiras passas num cigarro junto à escola primária dentro de umas manilhas de cimento gigantes. O peso na consciência foi tanto que assim que cheguei a casa bebi um litro de leite na inocente tentativa de me desintoxicar. Hoje olho para os meus filhos e para os meus pais e apercebo-me de que eles não tiveram sequer metade das ideias do que nós fazíamos. Mas fomos crescendo em liberdade, algo que os meus filhos não têm verdadeiramente. Aos 7-8 anos já ia para a escola sozinho, isto é, com grupos de amigos. Até aí a empregada dos meus pais ia-me levar. Hoje continuo a deixar os meus à porta da escola de carro. A rotina que lhes imponho, escola, casa, escola, casa sem vivência na rua pelo meio só pode estar a fabricar adultos que não crescem verdadeiramente. Será esta uma infância feliz? Duvido. Não sei que volta hei-de dar a isto. Mas talvez por ter feito tanta merda tenho um medo de morte do que lhes pudesse acontecer. De facto, o ideal seria viver na ignorância como os meus pais.

sábado, 9 de novembro de 2013

Club Noir

Já algumas vezes tinha passado à porta. Imaginei que se tratasse de um daqueles locais de culto nocturnos para populações seleccionadas. E é-o, mais ou menos. Paguei um euro à porta para entrar. Acho que fui literalmente roubado. Mas não convinha chatear o segurança de 2x1 metros. Nunca pago direitos de admissão. Acho uma verdadeira afronta. Passo normalmente directo. E acabo sempre por consumir mais do que me irritar e virar-lhes costas. Mas neste caso específico, queria mesmo entrar e resolvi dar uma moedinha ao arrumador de almas à porta do club noir. As escadas que dão acesso à cave têm um ar soturno e enigmático. Gostei sobretudo de uma pintura da capa do mítico filme de David Lynch, Eraserhead. Tive uma t-shirt assim que ofereci a uma espécie de namorada gótica dos tempos da faculdade. Hoje é uma tiazoca respeitável. Na altura gótica. Cá por baixo o ambiente é eclético. A música de gótica não tem nada. Zero. Porém muito boa para a minha faixa etária. The Cure. Peter Murphy. Bauhaus. Waterboys. etc. As pinturas b&w de ícones como Nick Cave, Bjork, Eduardo-mãos-de-tesoura, O Padrinho e Robert Smith estavam espalhadas pelas paredes. A fauna era mista e variada. As pessoas, sobretudo as chicks, dançavam de uma forma libertadora e despretensiosa. Ou seja, nas antípodas dos sítiozinhos da moda onde all eyes are on us. E isso agradou-me. Fiquei com vontade de ficar por lá mais tempo. Mas os meus amigos cortaram-se e quiseram mudar de ares. Não seria boa educação não acompanha-los. Sobretudo porque eu fui o taxista, bêbado, de serviço. Irei regressar. Club Nu-Arrrrr...

terça-feira, 5 de novembro de 2013

It was just a blow job. Maybe two.

Há sons que nos transportam. Melodias, acordes, letras que nos levam para outros locais. Conduzem-nos para outros tempos. Há músicas de uma vida. Ouço algo que tinha abandonado há algum tempo. A pronúncia britânica de outras paragens projecta-me a Paris. Dentro de um comboio, a seguir um autocarro, uma residência universitária, um jantar, uma discoteca da qual não sei o nome. Os registos ficaram. A dor que senti olhando para o tecto de madeira clara, ondulado. Lá fora o barulho das turbinas nas descolagens. O mundo ruiu à minha volta. E na realidade foi só um pequeno invólucro de uma tristeza infinita. Acabei de ver os dois últimos episódios da 5ª temporada de Californication. A minha novela erótico-dramática. It was just a blowjob. Maybe two. Não importa o sentido. O que ficou foi a dor de Charlie ao imagina-la nos braços de outro homem. Doí-me o ombro esquerdo. A sensação de queimadura arrasta-se desde há uma semana. A dor foi mais forte desta vez. Tenho a alma dorida. Mais do que o coração de escarlate incompleto. A peça perdida algures talvez um dia seja encontrada. 

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Dead People Walking on my Dreams

As pessoas mantêm-se vivas enquanto delas nos recordarmos. Não costumo ligar muito a dias específicos mas hoje é o dia de finados, ou de todos os santos, ou como lhe quiserem chamar. Na realidade devíamos pensar mais vezes em que já partiu. O nosso caminho é esse, sem excepções, desde o mais pobre ao mais poderoso dos seres humanos. A única certeza que temos. O dia e a hora não a escolhemos. Ou bem, até podemos, mas será sempre contranatura. Estava deitado e dei comigo a recordar algumas pessoas. Umas com grande importância na minha vida, outras que não deixaram marcas tão intensas mas com quem me cruzei. 
Cheguei a casa vindo da escola. Sabia que a minha madrinha estava muito doente e que não duraria muito. Que iria para o Céu ou lá o que isso era. Não era a minha verdadeira madrinha, mas sim da minha mãe. Para mim foi uma grande amiga, avó emprestada, quiçá segunda mãe. Sempre que saia em viagem as saudades que guardava dela eram imensuráveis. Trazia-me sempre qualquer coisa guardada na mala beje de pele. Ainda guardo uma t-shirt preta com um tucano carioca. Umas das viagens que fez e me marcaram foi ao Egipto. Uns anos mais tarde corri-o de uma ponta à outra e recordei os momentos, as fotos amareladas guardadas lá por casa. Penso que adquiri o gosto pelas viagens influenciado pela madrinha. Se existirem anjos da guarda a Nanã estará sempre ao meu lado. Senti-o na noite que antecedeu o meu exame de saída. Sabia que estava doente, mas talvez não tenha sido devidamente preparado para a sua morte. Despedi-me dela uns dias antes. Morreu em casa, rodeada pelas pessoas que lhe eram queridas. Quando cheguei a casa a empregada dos meus pais, com uma sensibilidade digna de um calhau musgoso, disse-me a tua madrinha morreu. Recordo-me do choque que foi como se tivesse sido hoje. Há momentos que ficam enraizados para todo o sempre. Esse foi um deles. As memórias visuais que guardo são esbatidas, as espirituais estão bem presentes. Confesso que não consigo perceber se é dela que me lembro ou de todos os milhares de registos do amor incondicional que tinha por mim. Já passaram quase 30 anos e as saudades são muitas. 
Outra morte que me foi especialmente penosa foi a da avó paterna. Estava em plena adolescência e passara a noite de fim-de-ano nos copos, no deboche. Recordo-me de chegar a casa a horas impróprias e encontrar o meu pai choroso que me disse, dorme umas horas e despacha-te que temos que ir para Lisboa - a tua avó faleceu hoje de madrugada no Santa Maria. Só cai em mim quando cheguei ao velório. Olhei à volta e cai em mim. A minha família é de facto envelhecida. Daqui para a frente vão ser um cair de peças de dominó paralelas como se de um jogo se tratasse. Todas as minhas tias e tio paterno já faleceram e alguns do lado materno. É a desvantagem de ser o mais novo da família. Bem, que agora já não sou. A morte da tia Nanda foi especialmente penosa. Essa a minha verdadeira madrinha. Estava de banco nesse dia. O meu pai ligou-me a dizer-me que a tia estava a caminho do hospital numa ambulância do INEM. Tinha alterações do estado de consciência. Quando cheguei ao pé dela, de bata, chamou-me pelo nome de um primo meu. Insisti com a colega da urgência central que lhe pedisse uma TAC CE. A carta enviada pela médica do lar, depositada em cima da mesa, que só li por acaso, fazia referência a uma queda. A colega queria-lhe pedir análises primeiro. Na minha opinião tratava-se provavelmente de um hematoma subdural. Infelizmente, acertei. Foi sujeita a uma trepanação e internada na neurocirurgia. Ainda a vi consciente. Tive tempo para me despedir. Durou poucos mais dias. É impressionante como aquela senhora, sempre impecavelmente bem arranjada que me levava a lanchar à Lua de Mel e à Suiça se possa ter deteriorado tanto. Há mais pessoas em quem penso, a avó pepa, a tia luisa, o tio mario, os meus priminhos tragicamente mortos num acidente na barragem de santa clara, no alentejo, o meu amigo pedro, o meu amigo joão, colegas... mas estou a ficar com um semblante demasiado pesado para continuar a escrever isto. Vou ver um episódio do californication e ver se arrebito.